quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Sobre o INFERNO


Alguém me perguntou se eu acretido na existência do inferno, o lugar onde Deus aprisiona as almas condenadas por toda eternidade em sofrimentos sem fim. Não Respondi. Contei uma estória para que a pessoa chegasse à sua própria conclusão.
Era uma vez um velhinho muito simpático que morava numa casa cercada de jardins. O velhinho amava o seu jardim e cuidava dele pessoalmente. Na verdade fora ele que pessoalmente o plantara - flores de todos os tipos, árvores frutiferas das mais variadas espécies, fontes, cachoeiras, lagos cheios de peixes, patos, gansos, garças. Os pássaros amavam o jardim, faziam seus ninhos em suas árvores e comiam dos seus frutos.
Tão bom era o velhinho que o seu jardim era aberto a todos: crianças, velhos,namorados, adultos cansados. Todos podiam comer de suas frutas e nadar nos seus lagos de águas cristalinas.
O velhinho amava todas as criaturas e havia sempre um sorriso manso no seu rosto. Prestando-se um pouco de atenção, era possível ver que havia profundas cicatrizes nas mãos e nas pernas do velhinho. Contava-se que certa vez, vendo uma criança sendo atacada por um cão feroz , o velhinho para salvar a criança, lutou com o cão e foi aí que ganhou suas cicatrizes.
Os fundos do terreno da do velhinho davam para um bosque misterioso que se transformava numa mata. Era diferente do jardim,porque a mata, não tocada pelas mãos do velhinho, crescera selvagem como crescem todas as matas. Quando o sol se punha e a noite descia, o velhinho tinha um hábito que a todos intrigava: ele se embrenhava pela mata e desaparecia, só voltando para seu jardim quando o sol nascia. Ninguém sabia direito o que ele fazia e estranhos rumores começaram a circular. Começaram, então, a espalhar o boato de que o velhinho, quando a noite caía, se transformava num ser monstruoso, parecido com lobisomem, e que na floresta existia uma caverna profunda onde o velhinho mantinha acorrentadas, pessoas de quem ele não gostava, e que seu prazer era torturá-las com lâminas afiadas e ferros em brasa. Lá- assim corria o boato- o velhinho babava de prazer vendo o sofrimento dos seus prisioneiros.
Outros diziam, ao contrário, que não era nada disso. O que acontecia era que o velhinho era um místico que amava as florestas e entrava no seu escuro para ficar em silêncio, em comunhão com o mistério do Universo.
Você decide. Você decide em que versão acreditar. Note bem: Ninguém jamais entrou na floresta escura. Tudo o que há são fantasias de homens cruéis e vingativos. Fantasias de homens movidos pelo o amor.
Se você se decidir por acreditar que o velhinho tem uma câmara de torturas que lhe dá prazer, então você tem de acreditar também que ele é um monstro igual aos torturadores que brincam com as crianças durante o dia e torturam pessoas indefesas durante a noite. Eu não poderia amar um velhinho assim. Você poderia? Diante de um velhinho assim a gente sente é horror, jamais amor.
Quem acredita que Deus tem uma câmara de torturas eterna não pode amálo. Só pode temê-lo. Mas como Deus é amor, aquilo que é temido não pode ser Deus . Só pode ser o Diabo. Mas, se você acreditar que tal câmara de torturas não passa de uma invenção do coração malvado dos homens, então você amará o velhinho cada vez mais.
Imagino que o velhinho deve ter chorado amargamente quando ficou sabendo dos boatos que os homens estavam espalhando. Acho que Deus chora também quando os religiosos, que se dizem a seu serviço, espalham esses boatos de que ele se diverte com o sofrimento dos presos na sua câmara de torturas. Se o velhinho não fosse tão bom, acho que seriam esses que ele enviaria para uma temporada de curta duração no inferno, se ele existisse...

Rubem Alves

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